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FUNK E RAP; SAMBA E PAGODE

as variações dos sons que marcaram épocas

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A afirmação de que todos os ritmos, melodias e letras de músicas são influenciadas por experiências sociais dos seus autores é verdadeira. Cada gênero musical acaba se moldando e se repartindo conforme os compositores vão acumulando bagagens. A cada situação inédita vivida, vem a inovação de uma arte.  Além das mudanças por causa dessas experiências, há outro motivo que pode transformar determinados gêneros: a necessidade de mercado. O rap e o samba, como todo bom gênero musical nascido da mais pura expressão da arte, não escaparam dessas causas.

Embora não seja o primeiro registro oficial do rap, a música "Rapper's Delight" se tornou um hit e é considerado o primeiro rap de sucesso. A partir daí o gênero se expandiu para o mundo, chegando ao Brasil por meio dos grupos da black music. O bem-vindo ao país foi num ambiente político turbulento, com um cenário de pobreza e de descaso. Foi nesse contexto que o rap e a cultura hip hop começaram a percorrer seus caminhos em solos da mãe gentil.

Chain Gang

Sam Cooke

Cilada

Molejo

Segundo o pesquisador e cineasta Marcelo Gularte, a origem negra e os guetos estadunidenses unem o rap e o funk, com destaque para o ritmo R&B (Rhythm and Blues) que é a gênese do funk americano que passou a ser caracterizado musicalmente pela percussão, teclado, bateria e baixo sempre na frente e os riffs de guitarra.


O pesquisador destaca que a expressão da palavra funk surgiu nos anos 60, e que o estilo que se conhece hoje nada tem a ver com o que foi há mais de 50 anos. O início do que se tem como funk brasileiro surgiu a partir dos anos 80, nos becos cariocas; e desde a sua chegada foi se transformando. Para Gularte, após passagens avassaladoras nas discotecas cariocas como música soul, black music, e depois explodindo com o aparecimento dos MC’s, o funk começou a se envolver num cenário de  polêmica.

“Com a descoberta do Volt Mix, tamborzão, as montagens, os funks de coreografia lideraram no mesmo momento em que os primeiros proibidões eram ensaiados após o fechamento dos clubes, com a CPI do baile funk de 1999, e o mergulho nos bailes funks de favela financiados pelo tráfico. Daí o fato das letras enaltecerem os patrocinadores e muitos MCs virarem caso de polícia por associação ao tráfico. Mas temos paralelo aos proibidões, que também conhecido como funk de apologia, os funks de putaria ou pornográfico”, explica Gularte.

 

A mudança de um estilo que nasceu na black music, passando na introdução de novas manifestações do som, como dança, chegando a clubes financiados pelo tráfico, levaram o gênero funk para um outro caminho no Brasil. Caminho esse que hoje não é apoiado pelo movimento da black music. Nas pesquisas desenvolvidas por Gularte foi observado um maior “respeito” do público ao hip hop do que aos do funk. Os que curtem o som da black music não reconhecem mais o funk como um movimento que leva adiante as causas da música do gueto. “Os curtidores da black music migraram para o hip-hop e exorcizam o funk carioca, alegando que o funk é alienado e foi por um caminho que se distanciou da ideologia do movimento preservado pelo discurso da critica social tão veemente presente  no hip-hop”, acrescenta Gularte.

Apesar dessa discussão dentro do movimento black, o pesquisador discorda do conceito “alienado” que é atribuído ao funk, alegando que tanto o hip hop como funk  que se conhece hoje no Brasil são vertentes que mantêm particularidades poéticas e musicais na abordagem do contexto que estão inseridos.

A ostentação, um estilo de letra muito usado hoje em vários gêneros musicais, também influencia as músicas que são produzidas.

 

O rap americano, em sua grande parte sendo produzida por uma indústria capitalista, colabora hoje com a exaltação de ideais de ostentação - fruto de uma nova realidade e de uma necessidade de produção cada vez mais intensa para satisfazer mais gente.


Para Gularte, o funk carioca, e principalmente o paulista - já que São Paulo é considerado o maior epicentro do consumo do país - se identifica com o rap americano contemporâneo, no sentido de buscar no poder do dinheiro as razões para produzir um som. 

Acontece que essa identificação já é observada há tempos, já que a linguagem da ostentação é usada, costumeiramente, para mostrar evolução das favelas. Além disso, ilustra o aumento no consumo de marcas aclamadas pelos mais ricos. Exemplo disso se vê na letra da música de um dos funkeiros paulistas mais conhecidos do Brasil, Mc Guimê. Na música “Tá Patrão”, nomes de marcas famosas e caras,  e um estilo de vida que privilegia o conforto e a fama, constroem um dos hits do cantor.

"Quando dá uma hora da manhã
É que o bonde se prepara pra vibe
Abotoa a polo listrada
Da um nó no cardaço, no tênis da Nike

Joga o cabelo pra cima
Ou põe o boné que combina com a roupa
A picadilha pode ser de boy
Mas não vale esquecer que somos vida loca

Portando o kit de nave do ano
Essa é a nossa condição
Olha só como que o bonde tá

Tapa, tapa, tá patrão
Tapa, tapa, tá patrão
Tênis Nike Shox, Bermuda da Oakley
Camisa da Oakley, olha a situação

Trecho da música “Tá Patrão” de Mc Guimê

Mostrar conquistas para quem foi um dia desacreditado é uma das mensagens que muitas letras querem passar. Tanto o funk carioca,  como o paulista, originários da música black, mas se distanciando do papel que lhe foram atribuído nos anos 60, acabam acompanhando de uma maneira ou outra o que se faz no rap americano. Os próximos passos dessas adequações e mudanças ainda são desconhecidos. Mas o fato, para Gularte, é que haverá muito mais definições.


“O funk é um ritmo que se tornou um canal de comunicação entre gerações e sempre encontra uma forma criativa de se reinventar, pois é a música eletrônica brasileira de maior expressão. Ao longo dessas quatro décadas e meia o ritmo passou por muitas transformações e continuará se transformando. Independente do preconceito e da discriminação, que tende aumentar criminalizando as camadas mais populares, o funk é a maior cultura de massa do país e tem um mercado que movimenta milhões, então será tolerado”, acrescenta Gularte.

O samba no mesmo compasso


Embora não tenha semelhança estética com o rap, o samba também sofreu uma variação musical e acabou vertendo novos estilos de som. Porém, diferente do funk, o pagode surgiu do samba como uma necessidade de mercado.

De acordo com a doutora em Ciências Sociais Maria Eduarda Araújo Guimarães, o samba também é fruto de uma identidade negra, na qual suas primeiras apresentações foram em terreiros de candomblé, de maneira escondida e sem representatividade diante da sociedade. A mistura do som da religião africana com canções populares portuguesas e europeias, que já existiam no Rio de Janeiro devido sua condição de cidade capital, fizeram do samba uma cultura fortemente ligada à mistura de som e costumes.

E com o passar do tempo a indústria cultural começou a ver no gênero uma forma de desmembrar os sons e buscou maneiras de torná-la atrativa a um número maior de pessoas. Foi nos anos 80 que começou uma nova maneira de tocar samba, e o pagode, que é como se conhece hoje, começou sua explosão nos anos 90. Explosão essa causada principalmente pelo rádio. O pagode acabou se tornando um produto com maior facilidade para vender. Para o compositor e músico Saulo Ligo, o pagode como subgênero do samba foi criado justamente para essa finalidade mercadológica. Por ter virado um produto comum e muito massificado, o pagode deslanchou e o samba começou a ter um espaço cada vez menor. “O samba é algo que ficou mais enraizado nas suas origens. Precisa ficar mais próximo com a tudo o que foi feito no passado, só assim que ele vive. E por isso acaba tendo menos espaço”, explica Ligo.


Na forma como se toca, samba e pagode têm muitas diferenças. As principais são na maneira de dedilhar o violão, acentuações rítmicas – que no samba antigo é mais rico, mais variado, e no pagode um formato sintetizado, como regra de mercado. O samba, principalmente o antigo, tem como uma das estrelas o pandeiro de couro; já o pagode impera o de nylon. Essas mudanças – desde a forma de tocar, até algumas substituições de instrumentos - acabaram também mudando a mensagem que o samba como música historicamente passou.

O filósofo Antonio Filogenio de Paula Junior concorda que o pagode que estourou nos anos 90 é um produto de apropriação da mídia, e que com isso retirou sua carga de consciência histórica para alcançar outros públicos. Essa ação de transformação não é um ponto positivo. “É como se tirasse o contexto social e arrumasse essa cultura pra alcançar um outro público (...). De certo modo há diminuição daquela expressão de resistência. Que lembra todo um contexto de liberdade, contexto de engajamento político. O samba é extremamente  político, muito engajado historicamente mesmo numa época de total repressão(...). Quando desloco essa perspectiva, essa consciência social do grupo, criando uma outra coisa é como se de certa forma se perdesse. Porque perde essa matriz, essa origem: Da onde veio? Por que veio?  Pra que veio?”, afirma Junior.

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