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Rap e samba: a mistura que fortalece a voz da LUTA 

 

 

Esteticamente é fácil identificar os clássicos sambistas e rappers que estão no imaginário da população. Um boné aba reta, uma blusa larga, um microfone, cara de mau; esses são alguns estereótipos formados para reconhecer quem curte rap. Do outro lado, um sambista também tem detalhes que costumam caracterizá-los no senso comum: um pandeiro, um chapéu caído de lado, jeitão de malandro. Postos lado a lado, é difícil imaginar como esses dois ‘mundos’ conseguiriam se juntar. Se no perfil exteriorizado cada estilo possui suas características que o destoam tão bem, na música, quando tocam, esses mundos acabam combinando, mas sem perder cada um a sua essência e sua mensagem.


Na história dos dois gêneros, samba e rap, há uma importante

semelhança. Os primeiros registros dos sons nasceram em berços da música negra. Do lado dos sambistas, os escravos que exerciam sua arte musical nos tambores. Do lado dos rappers, os excluídos, principalmente negros, que buscavam na letra e no som uma forma de se expressarem. Passado tanto tempo do nascimento dos gêneros musicais, ainda hoje o rap e o samba continuam sendo manifestações dos grupos marginalizados.


O produtor musical Blood Beatz, que já trabalhou com grandes nomes como Racionais MCs, Thaide, Haikaiss, Dexter e Lino Krizz, também concorda que essa aproximação de berço, e a continuação da produção musical dos gêneros nas comunidades mais pobres, fazem com que o samba e rap tenham muita ligação. “É uma semelhança forte e inegável essa da origem. E também hoje são feitos originárias em bairros periféricos, subúrbios. E a tendência é o lance que a musica sempre pega a pessoa pela identificação. Tu ouviu uma coisa que tu se enxerga nela. Ou que tu enxerga quem tu conhece nela. E tanto o samba como o rap, por tratar de assuntos próximos da comunidade, tem essa semelhança”, afirma Beatz.

Mas é claro que são gêneros que seguiram  caminhos próprios. Para o produtor e músico Ed White, que já gravou DVD’s e cantou com artistas como Pixote, Exaltasamba, Péricles, Jeito Moleque, Leci Brandão, Inimigos da Hp, entres outros, três pontos destacam o samba quando se fala em som: a harmonização, formação instrumental e swing. Para White, o samba tem uma mistura de bossa nova, o que o torna rico na sua capacidade harmônica, que sentimentalmente expondo é aquela sensação de agradabilidade aos ouvidos. Isso é possível devido à formação instrumental.

White destaca que o samba tem na sua composição muitos instrumentos com tonalidades diferentes, porém ao serem tocados, conseguem se equalizar. “É interessante observar a formação instrumental de um samba. Por exemplo: temos o cavaquinho, que sempre é servido como guia numa roda, num show. E o som dele consegue se equilibrar dentro de um campo com instrumentos com sons muito graves. O surdo e o tan tan, por exemplo. Nessa mistura a gente ainda tem o pandeiro, violão, entre outros. Então o samba tem como característica essa junção de instrumentos com tons extremos. De graves à agudos. E a riqueza de uma música é quando se consegue harmonizar toda essas informações sonora”, explica o músico. Essa harmonização, com a junção de tantos instrumentos, só poderia resultar num som com ritmo bem marcado e divisões rítmicas bem definidas. E é esse swing outro ponto característico do samba, fazendo com que quem ouve uma música, mesmo que leigo, torna-se um maestro. Marcando os tempos de cada tom no pé, de cada dedilhar com os dedos, de cada batida no surdo com cabeça.

No rap também há algumas particularidades sonoras próprias. A mais forte e perceptível é na execução do canto. Em que, ao invés das palavras saírem melodicamente, elas assumem um estilo falado, conversado. “Pra mim esse é um dos principais destaques para quem quer identificar como o artista produz a música rap. A letra é falada, e a tonalidade acompanha a fala. Um estilo parlando, como dizemos, que é uma palavra italiana. Você compõe uma letra com uma mensagem, e ela é passada conversando com você. Isso é muito característico do rap”, diz White. Além disso, a mensagem que o rap passa é outro diferencial do gênero. Na qual isso se tornou tão forte devido sua origem de luta social, que é impossível pensar em rap como som sem imaginar uma música com tons majoritariamente grave, e uma mensagem sobre as dificuldades da vida.

A tese política e a crítica social são tão enraizada que acabam assumindo um papel além da mensagem, e se torna característico da própria sonoridade. Diferente, por exemplo, do samba, em que há músicas que fazem crítica do social, mas são posições com uma visão romantizada da vida, dos problemas, das paixões. White ainda explica que “no rap, a percepção de som que a gente imediatamente entende é uma crítica. No samba a gente não tem essa ideia imediata”.

E é por seguir uma linha de crítica social que se explica a maior adesão do público rap ser os mais jovens.  Para Blood Beatz, são os mais novos que se identificam com um som que traz rebeldia, um incentivo a ser levado contra um sistema e uma série de mazelas. Mas essa mensagem de oposição ao status quo do rap está mudando.  “Samba e rap sempre foram sinônimos de exaltação do negro, do morro, da favela, do subúrbio. Mas o samba sempre foi ligado ao ritmo mais suave, mais cotidiano introspectivo, tratando os assuntos de maneira mais romântica, que fala do amor. E até então o rap nacional não tinha essa temática. Mas nos últimos sete anos já é possível perceber que está mudando”, explica o produtor.

E com esses momentos entre proximidade e distanciamentos com suas características distintas, samba e rap acabaram em vários momentos se unindo. E o resultado desses dois gêneros acabou se tornando o samba-rap. No Brasil, um dos pioneiros dessa junção é o cantor Marcelo D2.  Para White, há uma explicação compreensível para o fenômeno.
 

“Samba e rap conseguem ter uma pegada legal. Temos no som do rap um canto falado, seco, quebrado, uma divisão rítmica muito forte. Você consegue distinguir palavra por palavra. E depois você une com elementos do samba, uma cuíca, um surdo, pandeiro. Nesse conjunto instrumental, com o swing, eles se completam. Harmoniosamente falando temos uma complementação. Temos aí  o cara do rap revoltado com problemas da vida, falando ‘Tô puto, sou marginalizado’; e entra o samba . Tecnicamente podemos falar que fica um som completo e de qualidade também, isso no sentido da sonoridade. Esses dois gêneros se conversam muito bem”, explica White. Junção essa que é perceptível nas músicas do Marcelo D2, na qual se vê nas letras faladas um som bem marcado com surdo e do cavaco.

Nessa discussão técnica, que Beatz também dá a sua versão sobre a boa harmonia entre os dois gêneros. “O samba é feito num sistema de compasso binário, dois por quatro; e o rap é quatro por quatro. Então acaba que uma coisa entra na outra. E acabam combinando, porque o tempo acaba sendo igual. Mas isso ritmicamente, sonora nem tanto”, salienta Beatz. Segundo ele, “a composição do rap é feito com sample de funk, jazz, blues, mas com uma bateria eletrônica por cima, um baixo eletrônico sintetizado. Já o samba é completamente orgânico, com tamborim, tantã, surdo, banjo, violão sete cordas. A pressão sonora do samba, por ele ser orgânico, é menos que rap e qualquer outro gênero eletrônico”.

E é entre semelhanças rítmicas e diferenças sonoras, entre proximidades da cultura negra e a distância temática, e a possibilidade de um som completar o outro, que faz o samba e o rap tão distantes e tão próximos. O senso comum a partir do estereótipo para identificar cada representante dos gêneros acabam os distanciando. 

 

Mas quem busca compreender o que cada gênero representa para a cultura dos seus criadores, entender o que esses dois sons são capazes na transformação do ser humano, acaba submergindo num mundo rico de tons, sons, críticas, mensagens, ritmo, melodia, paixão, malandragem. Samba e rap, dois gêneros, dois mundos... mas que hoje conseguem representar tão bem um país. País que ainda luta contra a desigualdade e mazelas, porém sempre celebrando a amizade e o companheirismo, sonhando com uma sociedade mais justa, tendo na música um caminho para todas essas conquistas.

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