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A roda de samba como

 

CELEBRAÇÃO DA AMIZADE

Francisco de Assis Junior, o Buziga (foto), conta uma história que o marcou e também o grupo de samba Quilombola. Em 2011, numa sexta-feira à noite, foram chamados para a roda de samba numa casa na avenida Armando de Salles Oliveira, em Piracicaba (SP). Chegando ao lugar, 200 pessoas esperavam ansiosas o começo da cantoria.

Na hora de começar o ‘show’, veio o susto. Não tinha nada pronto. O organizador da roda achava que o grupo iria trazer todo o material de som. Não havia microfone, não tinha caixas de som. Passado o susto de início, Buziga resolveu colocar em prática uma das máximas de uma roda: toda roda marcada tem que ser executada; e ali, naquele dia, como em todos os outros, o bom sambista não deixou o samba morrer. Com apenas alguns instrumentos, como violão e cavaco, Buziga puxou na palma da mão a música “Insensato Destino”, de Almir Guineto:

"Oh insensato destino pra que

tanta desilusão no meu viver
eu quero apenas ser feliz
ao menos uma vez
e conseguir o acalento da paixão...

Trecho da música "Insensato destino", de Almir Guineto

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Germano Mathias

(Créditos: Do Samba ao Rap)

O tempo e a marcação da música eram guiados pelo cavaco e o espírito de amizade da roda começou tomar conta do ambiente. Imediatamente, o público chegou cada vez mais próximo, se aconchegou e a roda se formou. A partir daí, todas as pessoas presentes começaram a cantar, dançar e acompanhar o ritmo pela batida de mão, formando uma legítima roda de samba.


Sem conseguir ouvir direito o som dos instrumentos, Buziga cantou durante 1h30, ficou rouco e saiu da casa sem voz, mas não sem as tradicionais ‘cervejadas’ que acontecem após uma boa roda. “Aquele dia foi lindo. Esse é o sentido de uma roda. Uma reunião de pessoas, que embora às vezes a maioria seja de desconhecidos, acabam naquele momento se tornando amigos; amigos que se juntam para cantar um samba e se divertir”, diz.

Composto por Buziga e mais seis amigos, o Quilombola é mais conhecido como um grupo de amigos que tem em comum a paixão pelo samba, do que justamente uma banda musical. “Tudo começou há uns 15 anos. A comunidade Quilombola começou com o encontro de amigos e familiares nas festas na chácara Quilombola, em Charqueada. A formação, quero reiterar, não tem ligação com os escravos refugiados nos quilombos ou de descendentes, mas sim na celebração do samba que conhecemos como raiz, elemento fundamental que traçou a união da comunidade”, explica Buziga. “A gente sempre fala em comunidade porque usamos isso como prática de um convívio íntimo dos integrantes, que tem o compromisso de educar através da arte. Além de ajudar, promover e organizar eventos beneficentes para as pessoas próximas de nós”, salienta.

O grupo, além de manter o Quilombola como um canal para se reunir e tocar samba, tem um projeto pioneiro na cidade: o “14 Sambas”. A ideia foi inspirada no “Samba da Vela”, roda tradicional que acontece em Santo Amaro, na capital paulista. Paulo César Ferraz, o Teda, também integrante do Quilombola, explica que no “Samba da Vela” é acessa uma vela no centro da roda, e a partir daí começa o som, que só acaba quando a vela derrete inteira e apaga; mas isso demora cerca de três horas para acontecer. Enquanto a vela não acaba, o samba não para.

Foi então que após Deco, outro integrante do Quilombola, participar da roda na capital paulista, em 2005, que surgiu a ideia para acompanhar o mesmo movimento, nascendo a inspiração do “14 Sambas” do Quilombola. O projeto, de acordo com Teda, tem a proposta de manter viva, divulgar e aproximar a tradição do samba raiz, homenageando os compositores e incentivando a projeção de novos nomes. Para delimitar o tempo da roda, ao invés da vela, são tocadas e cantadas 14 músicas de artistas com pouco espaço na mídia, como: Moacir Luz, Monarco, Nelson Cavaquinho. O grupo se orgulha que o ápice do projeto foi a participação de Luz em uma das edições, ele é considerado grande referência do projeto.

Dos sete integrantes do Quilombola, cinco deles tiveram nas famílias sambistas ou admiradores do gênero.  Por já terem intimidade com o som, destacam que não há segredo numa roda de samba, e o sucesso dela não está na técnica da música ou dos instrumentos, e sim no clima, na energia que o “puxador” do som consegue passar para o público. “Uma roda de samba não tem segredo. É um cavaco, um pandeiro, uma cuíca. Um grupo de amigos, sentado à beira de uma mesa, e o som sendo tocado e cantado de acordo com cada puxador. Tudo de improviso e pensamento rápido. Além disso, tem o público que acompanha. A galera vai acompanhando. Acaba uma música e vem outra. O povo em volta tudo cantando. Por ter essa interação entre cantores e público é que digo que a melhor definição é uma reunião de amigos”, explica Buziga.

Teda concorda e acrescenta: “para que a roda de samba seja boa, o povo tem que vir junto. O povo é essencial, ele consegue sentir quando o som está sendo cantado com a alma”, afirma Teda.

O músico Saulo Ligo, que já tocou diversas vezes no Quilombola, também destaca que o grande diferencial do samba é a roda e que é justamente esse sentido de reunião de pessoas para cantar até enquanto tiver voz que faz o gênero viver. “O samba, como música, precisa dessa casualidade, desse encontro de amigos. Por isso que vive”, destaca Ligo.

O sambista Pixula, como gosta de ser chamado Antônio Candido, também já participou de diversas rodas no bairro de São Mateus, tradicional reduto do samba paulista. Perguntado sobre o segredo de uma roda, Pixula gargalha. “Há alguns gêneros musicais que têm todo um ritual bem organizado para se começar, pra ensaiar. Mas a roda não, meu caro. A roda remete muito ao inicio de alguma coisa, no caso onde nasce o samba, como se conheceu ontem e hoje. Então é tudo muito espontâneo, feito de improviso. Se você não tem um pandeiro, se imita o som na mão. Se sua voz não é afinada como todos entendem como afinação, puxa a galera e fica tudo numa só voz. Se esquece a letra da música, puxa um ‘trá-lá-lá’ e todo mundo acompanha sem problema nenhum”, comenta Pixula. Ele reforça que é justamente esse ambiente de descontração e que todos podem cantar e se divertir é “que faz com que a roda seja tão popular e tão simples de explicar”.

Para a doutora em Ciências Sociais Maria Eduarda Guimarães, uma roda de samba é fruto de uma construção de décadas e é a pura manifestação da arte musical dos escravos ainda durante e pós Brasil Imperial. Sua organização se moldou com a introdução de novos instrumentos, o aparecimento dos compositores, a introdução de novas melodias e letras; sendo finalmente massificada após a introdução do gênero na indústria fonográfica.

A roda, desde o primórdio que era formado por escravos, foi se adequando de acordo com cada estilo de compositor e público. Porém, mesmo com essas adaptações, e algumas diferenciações regionais, sua originalidade permanece. “O batuque negro das senzalas é, dessa forma, a gênese do samba tal qual conhecemos hoje (...). E esse som, com ritmo binário, de energia, permanece até os dias de hoje. Foi na cidade do Rio de Janeiro que criou-se condições para que a cultura negra, ao entrar em contato com outras produções musicais, conseguiu criar o gênero, cuja gênese estava no batuque africado, mas com uma afeição urbana”, explica Maria Eduarda.

Apesar dos seus primeiros registros serem de tanto anos atrás e ter sofrido várias tentativas de usurpação do seu verdadeiro valor como cultura negra, a roda de samba continua sendo uma das manifestações mais primitivas do samba. E desde os seu início, o seu verdadeiro sentido continua sendo seguido pelos amantes da música. O espírito de fraternidade, de amizade, de irmandade prevalece nas rodas. E a aproximação espiritual e material com o público é o que transforma um simples sambista em um mestre.

 

O engano de Vinícius

Em um passado não muito distante, o poeta Vinicius de Moraes (1913-1980) disse que “São Paulo é o túmulo do Samba”. A frase foi exclamada em 1960, durante uma apresentação do compositor Johnny Alf em meio a conversas paralelas do público.

“Para defender o amigo, Vinícius teria advertido os desordeiros e, tendo sua contestação sido recebida com desdém pelo grupo já embriagado, acabou num momento furioso proferindo a polêmica frase”, contou a doutora em História Social Ligia Conti Nassif e autora da tese “A Memória do Samba na Capital do Trabalho: os sambistas paulistanos e a construção de uma singularidade para o samba de São Paulo (1968-1991)”.

No momento em que a grande civilização ainda não era desenvolvida, o samba paulista se estruturou e se fortaleceu por escravos, nas grandes fazendas de cana-de-açúcar e cafés. “O samba era dançado nas senzalas e nos terreiros, ao som de grandes bumbões, cavados com fogo nos troncos de árvores enormes”, diz a antropóloga Olga Von Simson.

Segundo Olga, por longo tempo as raízes do samba paulista se mantiveram fortemente rurais e recebendo diferentes nomenclaturas, como: samba de roda, samba de bumbo, samba de lenço ou samba rural. “O povo o chamava simplesmente de batuque”, caracteriza Olga.

Mas passada quase 60 anos da polêmica frase dita por Vinícius de Moraes, percebe-se que ela não é tão verdadeira.  Em 2016 o samba completa um século, mas ao longo dos tempos este gênero passou por dificuldades, porém consagrou inúmeros grupos paulistas, que desmitificaram a opinião do poeta carioca.

 

A reportagem apresenta duas rodas de samba, conforme o Circuito de Rodas de Samba de São Paulo, lançado em 2015 e elaborado pelo mandato da compositora e atual deputada estadual pelo PCdoB, Leci Brandão (foto).

Em entrevista à reportagem, a deputada salientou a importância do guia cultural.  “Tem muitas rodas de samba em São Paulo, as pessoas que organizam os eventos não dependem de dinheiro público, fazem de forma natural. São as pessoas de suas comunidades que pegam seus instrumentos e se reúnem. Quando vimos que esse movimento tinha que ter mais visibilidade e que deveriam ser conhecidas, criamos, então, essa cartilha”, comenta a parlamentar.

(Créditos: Do Samba ao Rap)

Direto da feira

Ninguém imaginava que um encontro entre amigos em uma feira livre da Vila Santa Maria, no bairro do Limão, se transformaria numa roda de samba e permanecesse ativa por quase dez anos. “Existia um movimento chamado ‘Barra Funda Estação do Samba’, que era um encontro de compositores que ocorria toda segunda-feira na quadra da Escola de Samba Camisa Verde e Branco, mas num determinado momento a direção da escola decidiu encerrar este projeto”, contou o integrante e vendedor Alexandre Cezar de Souza. Segundo ele, a direção da escola de samba afirmou que o projeto aumentava as despesas e não arrecadava fundos à agremiação. “Focaram somente no financeiro e esqueceram o seu principal papel que é a formação de sambistas. Com as escolas esquecendo-se desse objetivo, fizeram com que os movimentos de samba surgissem fora delas”, diz ele.

Órfãos de um espaço em que pudessem se apresentar, os amigos se reuniram na frente de um bar na avenida Eulina.  Surgiu, assim, o “Samba na Feira”. O grupo se encontra no mesmo local todo terceiro domingo do mês, reúne cerca de 350 pessoas e traz um repertório misto, com sambas tradicionais e inéditos.

Nestes dez anos em atividades, o “Samba na Feira” já se apresentou nas principais casas de shows e eventos, espaços culturais, terreiros de escolas de samba e bares da cidade. “Posso avaliar o cenário do samba paulista de uma maneira muito positiva, próspera. São incontáveis rodas, projetos e manifestações. É preciso apenas separar o que se faz nas rodas e nas escolas de samba”, salienta Souza.

(Créditos: Divulgação/Samba da Feira)

De acordo com o sambista, a escola de samba é ativa para atender um mercado financeiro e segue um padrão imposto para os desfiles. “Existem escolas incapazes de montar uma roda de samba de qualidade com sua ala de compositores. Já as rodas acontecem por conta dos organizadores que metem a mão na massa e por conta da sociedade que frequenta”, ressalta ele, que ressalta a pequena participação do Poder Público. “Quando apoia é de maneira esporádica. O ideal era que fosse formada e mantida uma parceria na qual o Poder Público agisse de maneira eficiente e direta no envio da estrutura e manutenção da segurança”, afirma Souza.

Cafofo

Outro grupo que contempla o guia é o “Pagode do Cafofo”. Criado em meados de 2002 por um grupo de amigos, tinha a única pretensão de relembrar os sambas da antiga. “Foi criado com o intuito de resgatar as canções e compositores esquecidos que já não fazem mais parte da atual mídia, na qual costumamos dizer que não são comerciais”, salienta o presidente da Associação Comunidade Pagode do Cafofo Wagner Francisco do Valle. Para ele, a comunidade leva o samba a sério. “Cantamos aquilo que agrada quem vem do berço. Aqui em São Paulo costumamos dizer, não é um termo apropriado, que é o samba de raiz”, diz Valle.

(Créditos: Divulgação/PAgode do Cafofo)

O samba do grupo é quente, firmado na palma da mão e cantado sem discriminação de cor, raça ou religião.

 

“Neste ano completamos 14 anos de comunidade, de resistência e seguindo na luta. A meu ver o samba teve uma imersão com o crescimento das comunidades na capital, Grande SP e em outras cidades, mas ainda precisamos nos organizar melhor para galgar as conquistas deste gênero”, salienta o presidente.

Lígia Nassif Conti comenta que a defesa do samba paulista por parte de grupos de sambistas da capital ressoa as próprias narrativas da história da cidade, em meio ao grande crescimento industrial.

Ela ressalta ainda que os sambistas apresentam uma série de respostas a essa imagem do trabalho, crescimento e progresso a que associou São Paulo. “Em outras palavras, aos sambistas defensores de uma peculiaridade para o samba paulista não interessa exaltar a cidade do trabalho, mas sim dizer que na cidade do trabalho também tem samba”, exclama Ligia.

 

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